Ciclistas e o Direito à Cidade: Entre a Invisibilidade e a Resistência 6o6a6o

Ela está presente nas ruas, mas claramente não foi convidada. É tratada como uma intrusa 245b57

Thiago Barros
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Perigo por Encomenda/Columbia Pictures/Divulgação


O ciclismo vai além do transporte ou do esporte. Pedalar proporciona momentos de lazer, liberdade e conexão com a cidade, a natureza e outras pessoas. eios de bicicleta, eventos, competições e até produções audiovisuais sobre ciclistas mostram como o ato de pedalar pode ser prazeroso e inspirador. Nesse encontro entre movimento e diversão, o ciclismo se transforma em experiência cultural e estilo de vida.

No filme Perigo por Encomenda ( Rush), vemos um pouco (bem superficial) de que toda a lógica urbana gira em torno da mobilidade motorizada. O longa foi lançado em 2012, dirigido por David Koepp e estrelado por Joseph Gordon-Levitt, Michael Shannon, e Dania Ramirez.

A história gira em torno de Wilee (Joseph Gordon-Levitt), um dos muitos mensageiros de bicicleta que percorrem Nova York a toda velocidade, enfrentando o trânsito caótico da cidade. Diferente dos outros, Wilee usa uma bicicleta sem marchas e sem freios (Fixed Gear) — ele depende apenas de sua habilidade e reflexos rápidos para sobreviver.

Um dia, ele recebe uma entrega aparentemente comum, mas o conteúdo do envelope desperta o interesse de um policial corrupto, interpretado por Michael Shannon, que está desesperado para colocar as mãos no pacote. A partir daí, começa uma intensa perseguição pelas ruas de Manhattan, com Wilee tentando cumprir sua missão enquanto escapa do policial e de outros perigos.

Onde é o nosso lugar, onde devemos pedalar? s373z

Quando não há ciclovia ou ciclofaixa, resta ao ciclista circular pela rua — ou, em desespero, buscar refúgio na calçada. A invisibilidade sobre duas rodas começa no asfalto. As cidades brasileiras foram desenhadas para carros, caminhões e motos.

O traçado das vias, os tempos semafóricos, a largura das faixas, os investimentos em recapeamento e duplicações — tudo privilegia o automóvel. A bicicleta, quando aparece, é inserida de forma improvisada, quase como um corpo estranho no sistema viário.

Ela está presente nas ruas, mas claramente não foi convidada. É tratada como uma intrusa. E mesmo quando há ciclovias, o cenário chega a ser patético. Em muitas cidades, elas são simbólicas, decorativas, quase caricatas: começam debaixo de árvores, terminam em muros, percorrem trechos curtos que não conectam absolutamente nada.

Essas estruturas não formam redes, não pensam no deslocamento completo do ciclista. São concessões pontuais, feitas para aparentar progresso, mas não garantem o direito de circular. Diante disso, a desculpa recorrente é a falta de verba. Afirmam que não há recursos para construir ciclovias ou ciclofaixas, nem qualquer infraestrutura para a mobilidade ativa. Mas essa justificativa não se sustenta. Asfalto é trocado repetidamente, mesmo quando está em boas condições. Buracos feito por carro são prioridade. Vias são alargadas, cruzamentos redesenhados — tudo para favorecer ainda mais o transporte individual motorizado.

E isso custa caro. Infinitamente mais caro do que pintar faixas, criar conexões seguras ou investir em soluções simples e eficazes para quem pedala. Essa é uma escolha política. É uma decisão ideológica. O Estado brasileiro não valoriza quem anda de bicicleta. A mobilidade ativa não é prioridade porque desafia a lógica dominante: a da velocidade, da máquina, do consumo, da individualização do espaço urbano.

Enquanto isso, quem pedala continua sendo empurrado para as margens — e, em muitos casos, literalmente para a calçada. Como se ocupar a rua fosse um abuso, e não um direito. É fundamental lembrar: o Código de Trânsito Brasileiro garante ao ciclista o direito de circular na via, preferencialmente no borda direita da pista, no mesmo sentido dos carros, quando não houver ciclovia, ciclofaixa ou acostamento.

Contudo, esse direito é frequentemente ignorado. Motoristas não foram educados para compartilhar a via. Falta uma política contínua de educação no trânsito — tanto na formação de condutores quanto na comunicação pública — que reforce que o ciclista é parte legítima do tráfego urbano.

A dúvida que paira sobre os ciclistas todos os dias é direta e dolorosa: “Devo andar na calçada?” Diante do medo constante de atropelamentos, fechadas e ofensas, não seria mais seguro sair da rua?
Esse questionamento revela uma questão urbana central: a partilha equitativa do espaço público e o reconhecimento de diferentes formas de mobilidade.

A ideia de que ciclistas devem circular pelas calçadas — embora compreensível como reação à hostilidade do trânsito — revela a fragilidade da posição do ciclista diante de uma cultura que prioriza os carros. E esse medo não é infundado: muitos já sentiram a proximidade agressiva de um veículo, ou carregam as cicatrizes de um atropelamento injusto.

É importante ser claro: a calçada é território exclusivo dos pedestres. Um ciclista circulando na calçada pode causar acidentes, atropelar alguém, esbarrar em idosos ou machucar crianças. Além de proibido no artigo 59 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), esse comportamento coloca em risco tanto quem caminha quanto quem pedala. Mesmo que a escolha pela calçada surja do medo, ela não resolve o problema estrutural — apenas o transfere. O correto, previsto em lei, é pedalar na via, do lado direito, no mesmo sentido dos carros. Mas, tragicamente, essa é justamente a opção mais insegura no cenário atual.

Confundir a luta pela sobrevivência com a aceitação da culpa é um erro grave. A responsabilidade pela segurança no trânsito recai primordialmente, sobre quem conduz veículos mais potentes e a quem moldou a cidade com estrutura apenas para carros. A imprudência, a pressa e a falta de empatia de muitos motoristas são os verdadeiros catalisadores do medo que assola os ciclistas. O Código de Trânsito, mais do que um conjunto de regras, é um pacto social para proteger a vida — todas as vidas.

O ciclista, como cidadão pleno, tem o direito inalienável de usar o espaço público com segurança. No entanto, a formação dos motoristas no Brasil raramente inclui instruções claras sobre a convivência com ciclistas. E, culturalmente, o carro ainda é visto como “dono da rua”, enquanto o ciclista é percebido como um incômodo.

Faltam campanhas de massa, ações em escolas, na mídia e nos centros de formação de condutores para desconstruir essa lógica. A omissão do Estado é flagrante. A consequência é a perpetuação da violência simbólica e física contra quem pedala. E nesse contexto hostil surge o discurso recorrente e equivocado: “Vão para a calçada! Vocês nem pagam imposto!” Além de factualmente incorreto — ciclistas também pagam impostos —, esse argumento escancara uma visão excludente e autoritária do espaço urbano.

Essa mentalidade ignora que a rua é um bem comum, espaço de encontro e circulação para todos, independentemente do meio de transporte. O individualismo exacerbado e a idolatria ao automóvel revelam uma alarmante falta de educação cívica e compreensão coletiva. Quando um ciclista opta pela calçada, não está desistindo de seus direitos. Está, antes de tudo, buscando proteção diante de uma ameaça real. No entanto, se essa prática se generaliza, seus efeitos podem ser perigosos: ao abdicar do espaço viário, reforçamos a narrativa de que a rua pertence apenas aos veículos motorizados.

Involuntariamente, alimentamos a ideia de que somos intrusos — e um ciclista invisível é um ciclista ainda mais vulnerável. O que fazer então? Avaliar, momento a momento, se há condições mínimas de segurança para pedalar na via. Se houver, ocupe seu espaço com firmeza, visibilidade e atenção. Use sinalização, luzes, roupas chamativas. Pedale em linha reta, sem ziguezagues, e exija seu direito.

Mas e se a via for perigosa demais — com tráfego intenso, falta de acostamento e motoristas agressivos —, retirar-se temporariamente pode ser a decisão mais sensata. Buscar caminhos alternativos, horários menos movimentados ou até empurrar a bicicleta por alguns metros pode ser mais prudente do que arriscar a vida.

Não se trata de desistir. Trata-se de sobreviver para continuar lutando!

A luta pela segurança e pela presença do ciclista no espaço urbano é multifacetada. É uma luta por infraestrutura adequada, ciclovias conectadas e seguras, sinalização clara e respeito às faixas exclusivas. É uma luta por fiscalização eficiente e leis que responsabilizem condutores imprudentes.

Mas acima de tudo, é uma batalha cultural. Uma disputa por reconhecimento, respeito e cidadania. Uma jornada que exige resiliência, coragem, união e inteligência. Coragem para ocupar a via quando for seguro. Firmeza para denunciar abusos. União da comunidade para pressionar o poder público. E sabedoria para saber quando recuar — não por covardia, mas por estratégia.

A verdadeira vitória é continuar pedalando. E fazendo isso, um dia após o outro, ajudamos a construir cidades mais humanas, seguras e justas para todos.