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Pixabay

Lembro de quando uma receita ou um conserto em uma peça de roupa não eram só uma lista de instruções ou um vídeo tutorial. Eram desculpas pra ligar pra mãe ou pra fazer uma visita à casa da avó. Tudo bem que hoje, se precisar, é só abrir o YouTube e a Rita Lobo resolve. Ela sabe tudo de comida boa… Mas e aquele toque das mãos da vó na massa ou a paciência da tia-avó ao me ensinar a costurar? Isso, não tem tutorial que capture.

Hoje em dia, tudo está a um clique de distância. A receita da lasanha perfeita, a dica infalível pra acertar o ponto do brigadeiro. Mas, antigamente, cada receita vinha com uma história. A gente não ligava pra aprender o truque do bolo fofinho; ligava pra ouvir a voz familiar do outro lado. Aquele tom de “faz assim filha, não tem erro”.

Minha avó materna, uma italiana brava e muito prendada, tinha o hábito de fazer pão no forno à lenha. Era sagrado, toda sexta-feira. Eu fazia plantão na casa dela esperando sair quentinho pra comer com a manteiga derretendo. Era uma fornada com umas oito unidades, pra durar a semana toda. Minha mãe vivia reclamando – como todas as boas mães do mundo –, mas eu e minha vó éramos comparsas. Ela mentia na cara dura, garantindo que eu não tinha comido pão quente. E, se tivesse dor de barriga, era outra coisa.

Ela ensinava sem pressa, falando de como as coisas eram no seu tempo, de como o mundo mudou, enquanto o cheirinho do pão tomava conta da casa toda. A receita, no fim, era só um pretexto pra estar perto.

A outra avó – a paterna, com ascendência polaca e tão brava quanto a materna – morou a vida toda no sítio e era conhecida como a “vó do mato” pela infinidade de netos acostumados com a vida na cidade grande. Ela fazia tudo o que agradava aos pequenos cidadãos urbanos. Quando sabia com antecedência da chegada de qualquer um dos pirralhos, preparava o requeijão fresco com o leite recém-tirado da vaca. Pierogui e pastel de requeijão se transformavam em evento familiar, principalmente quando os primos se reuniam no período de férias. Isso porque era na “vó do mato” que nos encontrávamos e aprontávamos tudo o que era possível e, principalmente, o que não era.

Não tinha tutorial, não existiam cliques e as fotos daqueles tempos eram raras. Televisão até existia, mas no mato ainda não era um objeto de consumo. Mas tinha oração antes da refeição, gruta com água geladinha pra nos refrescarmos nos dias de calor e o céu estrelado daquele lugar no sul do mundo é o mais lindo que já vi até hoje. À noite, o barulho era dos grilos ou dos vagalumes que tentávamos prender num quartinho pra iluminar nossas peripécias.

Sem celular, streaming ou computador, as horas de tédio eram preenchidas por aprendizados. Foi assim que aprendi pregar botões e costurar vestidos pras minhas bonecas. Na época o comércio com a China se limitava aos produtos necessários pra atender ao mercado interno, o que não incluía órios pra brinquedos e outros penduricalhos.

Minha tia-avó, com toda a paciência do mundo, me ensinou o básico do corte e costura lúdico. Ainda lembro do jeito que ela ava o fio na agulha, as explicações pausadas, como se eu fosse uma pequena aprendiz em um ritual de agem. A cada botão que eu pregava – meio torto, mas era um começo! –, ela sorria e dizia que estava ótimo, que a boneca estava “pronta pra sair”.

É engraçado: integrantes da geração X – a minha – ou anteriores aprenderam com as mãos e as histórias de quem os amava, sem touch screen envolvido ou dicas de influenciadores. O afeto vinha junto com o ensinamento e a nem percebíamos a sorte que tínhamos.

Agora, quando o botão cai ou a receita é nova, é só abrir o celular. Prático, sem dúvida. Mas fica faltando a graça, a conversa. Eu me vejo sabendo mais do que antes, mas, ao mesmo tempo, parece que falta algo. O bolo sai do forno, o botão é costurado, mas é como se estivessem sem alma, sem aquela mão carinhosa que ensinava mais sobre o que realmente importa. As receitas de internet não trazem as risadas, as histórias, o jeitinho especial de mexer a colher. O quitute sai perfeito, mas o afeto parece que ficou pelo caminho.

Claro que eu adoro a praticidade da vida moderna. Mas, de vez em quando, dá saudade de quando precisava de uma receita e, no fundo, só queria estar perto de quem sabia fazê-la com amor.

Danielle Blaskievicz é jornalista, empresária e tem memórias maravilhosas da infância cercada das avós e dos primos.